Do colega Joaquim Ribeiro de Souza Júnior, Promotor de Justiça em Santa Luzia:
"Sabe-se que a corrupção é o principal entrave ao desenvolvimento do nosso País. No entanto, embora se tenha o diagnóstico exato acerca do problema, ainda não se alcançou a cura. Isto porque a corrupção está enraizada na cultura do nosso sofrido povo brasileiro. Desde que os portugueses aqui chegaram, já foram oferecendo espelhinhos e pentes em troca da exploração de nossas riquezas. Venceram as naturais resistências com a utilização do poder econômico e sem maiores dificuldades usufruíram o quanto puderam.
Analisando-se as circunstâncias políticas e sociais do Brasil de hoje, percebe-se que essa realidade pouco mudou desde o descobrimento. A incômoda verdade é que ainda estamos em plena colonização sem oferecer qualquer resistência graças à mesma estratégia outrora utilizada pelos portugueses, qual seja, o abuso do poder econômico e político. A única diferença é que o destino das nossas riquezas não é mais Portugal, mas sim as contas bancárias dos nossos representantes políticos existentes em paraísos fiscais e países que não possuam tratado de extradição com a terra do pau brasil.
Com a Constituição Federal de 1988, renasce uma instituição totalmente remodelada e que teve a audácia de levantar voz contra esta secular cultura de imoralidade: o Ministério Público Brasileiro.
Com a atuação mais independente e eficiente de Promotores e Procuradores imediatamente veio o reconhecimento da sociedade. Graças ao Ministério Público, não se consegue varrer crimes contra a Administração Pública para debaixo dos tapetes palacianos com a mesma facilidade de outrora. De fato, milhares de ações judiciais propostas pela Instituição ministerial já alcançaram resultados que, vinte anos atrás eram inimagináveis. Tais êxitos só não são ainda mais perceptíveis pelo fato do Poder Judiciário não imprimir maior celeridade aos processos que tratam da defesa da probidade, quer pelo excesso de demanda, quer pela extrema formalidade dos ritos e a infinidade de recursos admitidos pelo ordenamento jurídico.
Porém, uma realidade é inquestionável: ser corrupto hoje em dia, não está mais tão fácil como antigamente. Esta nova realidade gerou repulsa imediata por parte da “banda podre” da classe política brasileira, infelizmente ainda numerosa. Começaram a pensar os maus políticos: como pode isso? É justo eu construir um moderno viaduto, uma linda ponte, um luxuoso prédio e não ter direito algum? Onde está a “minha parte”? Vou ter que viver só do salário de legislador ou chefe do Poder Executivo? Se não me apropriar de recursos públicos, como vou comprar meus eleitores na próxima eleição? Se não posso contratar fornecedores de bens e serviços sem licitação como vou retribuir as pessoas que investiram em minha carreira política? Não posso nomear meus parentes para cargos em comissão, então como vou fazer para dar um carro de aniversário para meu filho? Chame já aquele lobista daquela empreiteira, pois vou ter que renegociar “minha parte”!!!
Ao final desta dolorosa sessão de lamentação o mau político pergunta aos demais membros de sua organização criminosa: vem cá, antes conseguíamos praticar todo tipo de malversação de recursos públicos com absoluta facilidade, o que está acontecendo agora? O Brasil não é o País da impunidade? Em seguida o comparsa responde: Excelência, agora nós temos o Ministério Público, a CGU, dentre outras instituições no nosso pé. Tomado por uma ira dantesca, o mau político profetiza: os dias destes Promotores e Procuradores estão contados.
Em ato contínuo, sentindo-se ameaçados, os maus políticos se unem em prol do direito de roubar. Elaboram uma espécie de pacto de sangue, com os seguintes mandamentos: 1) Respeitar os demais políticos ladrões como a si mesmo; 2) Solidarizar-se com os mesmos, afinal, amanhã poderá precisar deles; 3) Não cobiçar a propina alheia; 4) Não realizar um empreendimento sem obter vantagens indevidas; 5) Quando ocupar cargo no Legislativo, apresentar, periodicamente, projetos de lei visando o enfraquecimento do Ministério Público e instituições responsáveis pelo combate à corrupção, e manifestar-se-á favorável aos projetos iniciados por outros colegas que sejam corruptos; 6) Não dar importância aos anseios sociais que visem facilitar o combate à corrupção, compensando eventuais perdas de votos com discursos demagógicos e posturas assistencialistas; 7) Afirmar constantemente que todos os que desejam combater a corrupção, na verdade, estão à procura de apelos midiáticos; 8) Não adquirir patrimônio em seu próprio nome, colocando todos em nome de parentes e criados da maior confiança; 9) Dizer-se vítima de perseguição quando explodir algum escândalo de corrupção envolvendo seu nome, não se esquecendo de negar, negar e negar; 10) Iludir a população com números, uma vez que, números não mentem, apesar de mentirosos falsificarem números.
Em razão do cumprimento fiel do pacto, já estão em tramitação no Congresso Nacional mais de 1.200 projetos de lei que visam o enfraquecimento do Ministério Público.
Parece que o próximo a entrar em pauta no Congresso Nacional é o projeto que visa punir membros do Ministério Público que ingressarem com “ações temerárias”. Foi divulgado em diversos veículos de comunicação que, em meio a uma investigação do Ministério Público de São Paulo envolvendo o tesoureiro do PT por suposto desvio de dinheiro para campanhas petistas, os líderes partidários decidiram incluir na pauta de votação da Câmara o projeto de lei do deputado Paulo Maluf (PP-SP) instituindo crime e punições para integrante do Ministério Público em caso de ações contra agentes públicos. O nome mais apropriado para se referir à candidata à futura lei talvez seja “Estatuto da Corrupção”, considerando a iniciativa do projeto e as adesões que já foram feitas ao mesmo. Espera-se que a votação ocorra após a semana santa.
Não há dúvida de que a proposta é um ataque direto a uma das instituições que mais contribuem para o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito que é o Ministério Público. Esse projeto de lei foi um dos 14 escolhidos pelos líderes partidários na reunião com o presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), para serem votados nas próximas duas semanas.
A base do projeto de Maluf é responsabilizar com pena pecuniária o integrante do Ministério Público que supostamente agir de forma temerária ou política. Diz o projeto: "Constitui crime a representação por ato de improbidade ou a propositura de ação contra agente público ou terceiro beneficiário, quando o autor o sabe inocente ou pratica o ato de maneira temerária". A pena prevista é de prisão de seis a dez meses e multa. Somado a isso, o denunciante fica sujeito ao pagamento de indenização pelos danos materiais, morais ou à imagem do agente público denunciado. Observem que o autor do projeto já foi acionado dezenas de vezes pelo Ministério Público por malversação do erário.
Verifica-se que a proposta cria um sistema de punição tão perverso que, ao invés de combater o mau membro do Ministério Público, vai apenas fragilizar os bons. O resultado prático será a inequívoca redução do número de ações propostas, justamente no momento em que se amplia o clamor contra a corrupção generalizada no Brasil.
“Emudecer o promotor é calar a sociedade, e tirar-lhe o poder de investigar é suprimir da sociedade um dos mais legítimos instrumentos de controle da transparência”. A declaração foi feita, no último dia 17 de março, pelo novo presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), César Mattar Jr., durante a posse da nova diretoria e conselho fiscal da entidade, em Assembleia Geral, em Brasília. Complementando, indaga-se: a quem interessa o enfraquecimento do MP?
Ninguém afirma que o Ministério Público é uma instituição perfeita. O que se afirma é que número de bons promotores e procuradores é infinitamente maior ao de maus profissionais. Afirma-se ainda que enfraquecer a atuação ministerial milita em favor dos ímpios e em desfavor da sociedade. Já existem mecanismos jurídicos previstos em Lei para conter excessos pontuais da Instituição ministerial. Até mesmo um órgão de controle externo já foi criado que é o Conselho Nacional do Ministério Público.
Apesar de alguns excessos absolutamente esporádicos, não se conhece uma instituição que mais esteja contribuindo para a efetivação dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal do que o Ministério Público. As normas constitucionais só não se transformam em letra morta em razão da atuação eficiente e corajosa de promotores e procuradores. O que seria da saúde pública, do meio ambiente, da criança e adolescente, dos idosos, dos portadores de necessidades especiais, dos consumidores, da probidade administrativa, do controle dos abusos policiais, do regime democrático e de diversos outros direitos fundamentais se não fosse o Ministério Público.
Faz-se imprescindível destacar que o projeto acima citado não é apenas nocivo ao interesse público. É também inconstitucional. Primeiro porque, o membro do Ministério Público será condenado à reparação de danos materiais, morais e à imagem sem ser parte do processo de improbidade e, portanto, sem direito ao contraditório e a ampla defesa. Vale registrar também que não é possível se falar em reconvenção, uma vez que quando o promotor propõe uma ação judicial não está agindo em nome próprio, mas sim em nome da Instituição e do Estado.
Outro vício de constitucionalidade manifesto se revela quando o projeto impõe diretamente ao agente público (promotores e procuradores) a responsabilidade por danos causados a particulares, ignorando por completo a redação do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, que trata da responsabilidade civil do Estado. Em razão de tal dispositivo as pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso nos casos de dolo ou culpa.
Em julgado bastante antigo (RE 90.071/SC, 18.06.1980), o STF havia decidido que a pessoa que sofreu dano teria a faculdade de mover a ação de indenização simultaneamente contra a Administração e o agente público, numa hipótese de litisconsórcio passivo facultativo, devendo-se demonstrar dolo e culpa apenas do agente, já que a responsabilidade do Estado seria objetiva.
Ocorre que, em data muito posterior, o STF, mudando seu entendimento, julgou o RE 327.904 (rel. Min. Carlos Britto, 15.08.2006, Primeira Turma, unânime), no qual decidiu que a pessoa que sofra o dano não pode ajuizar ação, diretamente, contra o agente público. É a seguinte a ementa do RE 327.904:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO: § 6º DO ART. 37 DA MAGNA CARTA. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. AGENTE PÚBLICO (EX-PREFEITO). PRÁTICA DE ATO PRÓPRIO DA FUNÇÃO. ― O § 6º do artigo 37 da Magna Carta autoriza a proposição de que somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela reparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns. Esse mesmo dispositivo constitucional consagra ainda, dupla garantia: uma em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular.
Anote-se que a mesma orientação foi adotada no julgamento do RE 344.133/PE, rel. Min. Marco Aurélio, em 09.09.2008 (Primeira Turma, unânime). Seja como for, pode-se afirmar que a posição mais recente manifestada pela Corte Suprema é pela impossibilidade de a pessoa que sofreu o dano ingressar com ação de indenização contra o agente público, porque este só responde, se for o caso, à pessoa jurídica a cujos quadros pertença, em ação regressiva.
O projeto, portanto, viola o artigo 37, § 6º da Constituição Federal, e sua interpretação atual manifestada pela Suprema Corte brasileira.
Outro trecho inconstitucional da proposta é o que criminaliza a propositura de ações de forma temerária. A depender do gosto do interprete, qualquer propositura de ação judicial pode ser interpretada como temerária, sendo que tal criminalização genérica gera insegurança jurídica e viola o princípio da legalidade penal, estampado no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, bem como no art. 1º do Código Penal.
Em razão do princípio da reserva legal em matéria criminal, exige-se que a descrição da conduta criminosa seja detalhada e específica, não se coadunando com tipos genéricos, demasiadamente abrangentes. O perigoso processo de generalização estabelece-se com a utilização de expressões vagas e sentido equívoco, capazes de alcançar qualquer comportamento.
O mestre Fernando Capez, em sua obra Curso de Direito Penal, Volume 1, Editora Saraiva, 14ª Edição, página 63, nos ensina que:
"De nada adiantaria exigir a prévia definição da conduta na lei se fosse permitida a utilização de termos muito amplos. A garantia, nesses casos, seria meramente formal, pois, como tudo pode ser enquadrado na definição legal, a insegurança jurídica e social seria tão grande como se lei nenhuma existisse."
Portanto, havendo descrição genérica da conduta criminosa, haverá inconstitucionalidade da lei penal incriminadora, em razão do disposto no artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal.
Ademais, conforme já mencionado acima, existem instrumentos legais aptos a controlar excessos do Ministério Público. Basta citar a descrição do delito de denunciação caluniosa que prevê pena de dois a oito anos de reclusão para quem dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente, dentre tantos outros. Portanto, a figura típica que se pretende criar, na verdade, ao invés de agravar a situação jurídica daquele membro do Ministério Público que propõe ações criminais e/ou de improbidade administrativa, utilizando-se de expedientes escusos, acaba por abrandar o tratamento, o que nos leva a reafirmar que o projeto, não punirá os maus membros do Ministério Público, mas apenas fragilizará aquela grande maioria que atua de maneira correta e íntegra.
Enfim, o projeto caminha na contramão do que a sociedade espera de seus representantes no Poder Legislativo. Porém, é bom que o mesmo seja votado justamente neste ano eleitoral, pois, só assim os eleitores poderão avaliar quais os seus representantes que desejam fortalecer os mecanismos de combate à corrupção e quais objetivam enfraquecer tais mecanismos e instituições. As máscaras cairão e justamente às vésperas das eleições gerais e presidenciais, o que é extremamente positivo. Ademais, promotores e procuradores dos rincões mais afastados deste País inteiro poderão, em seus respectivos contatos diários com a sociedade e contando com o apoio da CONAMP e ANPR, divulgar a lista dos parlamentares que votaram a favor deste que promete ser o inédito Estatuto da Corrupção, manual de consulta obrigatória para aqueles que querem enriquecer sorrindo do generoso contribuinte/eleitor brasileiro e passível de ser copiado por todos os países onde prevaleça a cultura do “rouba, mas faz”."